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Devaneios de uma roteirista insone

Nas páginas do seu diário imaginário as personagens vivem trocando de papel. Até ela. Sem roteiro pré-definido na maior parte do tempo, a graça da novela da vida daquela moça é justamente esta: cenas improvisadas enchem a trama de surpresas, nem sempre boas, mas certamente interessantes. Ora comédia, ora tragédia, quiçá um romance. A protagonista da história está quase sempre de peito aberto pro próximo capítulo.

Pegou carona nos álbuns de fotografia

Viajou tanto, aquela moça. Pegou carona nos álbuns de fotografia. A levaram pra lugares que já conhecia. De alguns, porém, mal lembrava. Alguns não existem mais. Não mais como haviam sido. Revisitou outros tempos. Outras que já fora. Se pareciam com a moça, mas também já não existiam como haviam sido. Reencontrou muitos amigos e amores. A alguns vê, ainda, com mais ou menos frequência. E foi bom saber que continuam perto. Outros não existem mais, de carne e osso. Moram lá, nos percursos proporcionados pela carona com  álbuns de fotografias. Estavam todos em algum lugar do caminho e conversaram muito com ela. Deu um olá pra família. Matou tanta saudade, aquela moça. Se alguém registrasse o rosto daquela moça durante a viagem flagraria muitos sorrisos. E olhos marejados. E se alguém pudesse sentir o que ela sentiu certamente sofreria, um pouco, com aquele aperto no peito. A carona com os álbuns de fotografias fez a moça nascer e morrer algumas vezes. Junto com as pessoas. J

Vista do céu

Se no chão você já é linda, vista aqui do alto fica ainda mais deslumbrante. Ilha de diversas caras, da laguna e das lagoas, dos rios e cachoeiras, das praias mansas e bravas. Da linda Dama de Ferro que leva do nada a lugar nenhum. Ilha da minha casa encantada (vizinha do mato e do mar). Me sinto tão tua, como se nunca tivesse chegado. E, toda vez que parto, por mais que goste do resto do mundo, me bate uma pontinha de saudade. Mas eu já volto. Já volto.

Ah, a barriguinha

Não, nada contra as barrigas tanquinho. Mas foi aquela pochete dele que mexeu com ela. Lembrava os homens que ela amou de verdade. Os sem muita vaidade, com barba por fazer (não por charme, mas por pura preguiça de barbear). A delicada camada de tecido adiposo na região abdominal do rapaz fez com  que ela imaginasse a maciez proporcionada pela pressão daquele corpo sobre o dela. A gordurinha podia representar qualquer coisa, mas ela apostava que ele gostava do que era bom: cerveja bem gelada, carne mal passada, cafezinho e quiçá um cigarrinho. No cair de uma madrugada qualquer, para lembrar como é que era, amou de mentira um homem de verdade, por algumas horas.

Sobre o que não foi dito

Quando você foi embora, deitei no travesseiro que você usou e lembrei que também gosto do seu cheiro. Pensei em lhe contar, ao responder o e-mail que me mandou dias depois. Aí ensaiei lhe dizer, também, que gosto da relação que temos agora, de como nosso amor se transformou. Na verdade, falo do meu, porque do amor do outro nada se sabe, por mais declarado que seja. É muito provável que eu nunca tenha deixado de gostar do seu cheiro. Pensando bem, não deixei de gostar de você também - muito embora já tenha odiado coisas que você tenha feito. Respondi ao e-mail sem dizer estas coisas. Já deixei de falar outras tantas, mais importantes à época, que achei melhor me calar. Mas hoje, vendo um filme triste, o meu peito se encolheu diante das lembranças do que não vivi ao seu lado. Depois, com alegria, me emocionei com a beleza do que o tempo fez em nós. E no que eu sinto. Ainda lhe quero bem e feliz. Mas não me deixa mais triste não te ter.
Enquanto o cotidiano consome, devoro a vida pelas beiradas.
E com a euforia de uma criança, brinco, canto, danço e vivo cada dia, como se fosse o primeiro.